Na década de 60/70, durante as férias de julho, virou habito
meu pai promover viagens de carro com a família.
As estradas estavam em bom estado de conservação, mas
tinham a características de serem singulares. Tinham uma pista com dupla faixa
de direção.
Mesmo assim, em função do trafego ser de baixa densidade,
havia certa segurança contra acidentes.
Os motoristas de caminhão eram cordiais.
Através de um código com o pisca pisca sinalizavam quando
era possível ou não uma ultrapassagem.
Quando piscava na direita, a ultrapassagem era possível.
Quando piscava na esquerda, não.
Ao ultrapassar a gente dava uma buzinada de agradecimento.
Em 1971 o destino foi o Nordeste.
Tinha 19 anos.
Fomos, meus pais e meus irmãos, num Chevrolet Opala.
Na ida, a aventura foi pelo sertão nordestino, até
Fortaleza.
Na volta, seguimos pelo litoral nordestino, passando por
todas as capitais, ate chegar a Salvador.
Já estávamos viajando há quase 30 dias.
Começou a entediar.
Estava cansado de tanto rodar pelas estradas.
Resolvi, então, voltar de avião, de Salvador para São Paulo.
Sempre gostei de voar, apesar de ate então ter voado
pouco.
A ultima viagem de avião que havia feito foi ida e volta
de Brasília ate Belém do Pará.
Estávamos também em férias de julho.
Havíamos ido de carro até Brasília.
Lá meu pai resolveu fazer o restante do trajeto por avião.
O piloto permitiu nosso acesso a cabine.
Fizemos a festa.
Mexíamos nos comandos, sob a supervisão dele.
Foi emocionante.
Fechar essa viagem pelo nordeste com um voo seria
sensacional.
Entretanto, meu pai disse que não pagaria a viagem.
Como tinha um dinheiro na caderneta de poupança, pedi para
meu pai comprar a passagem, que eu o reembolsaria em São Paulo.
Ele comprou da Varig, na época a melhor companhia aérea do
Brasil e no mundo.
O voo era vespertino e fazia uma escala no Rio de Janeiro.
Peguei a poltrona da janela esquerda.
Ao embarcar fiquei imaginando poder ver o Rio de
Janeiro da cabine do piloto!
Fiquei eufórico com a ideia.
Como era costume na época, o serviço de bordo nos aviões
era completo.
Havia refeição variada e bebida alcoólica à vontade.
Tão logo o avião decolou comecei a beber uísque importado.
Como não tinha habito de beber, somado ao efeito da
altitude e da pressurização, rapidamente fiquei um pouco zonzo.
Como estava encerrando o serviço de bordo, achei que aquele era o momento de ir para a cabine do piloto.
Solicitei a aeromoça, que é como se chamava
a comissária de bordo, que ela perguntasse ao comandante da aeronave se eu poderia
visitar a cabine.
Na década de 70 essa prática era sistematicamente
proibida, em razão de sequestros de avião.
Evidentemente, a aeromoça retornou com um sonoro não.
Fiquei indignado.
Reclamei dizendo que não era um terrorista.
Era apenas um fanático por aviões.
Ela manteve a proibição.
Disse que, se quisesse fazer uma reclamação, que o fizesse
por escrito.
Entregou-me um formulário próprio.
Eu peguei.
Escrevi severas criticas sobre a atitude do comandante, assim
como contra o estabelecimento da proibição.
Solicitei que a aeromoça entregasse o formulário ao
comandante.
Ela dirigiu-se a cabine e o entregou.
Pousamos no Galeão.
Como estava sentado junto à janela, fiquei olhando com
curiosidade o aeroporto e os aviões estacionados.
Naquela época não havia fingers.
O acesso e desembarque eram na pista, por uma escada.
Enquanto acompanhava a colocação da escada junto ao avião,
observei que nas proximidades havia alguns homens fortes, mal encarados.
Assim que foi aberta a porta da aeronave eles subiram.
Vieram pelo corredor do avião em minha direção.
Ao se aproximarem pediram, gentilmente, que eu os
acompanhasse.
Respondi que não o faria.
Disse que estava indo para São Paulo.
Eles se identificaram como agentes da policia federal.
Insistiram que deveria descer e acompanhá-los para uma
conversa.
Um deles disse que depois eu voltaria para prosseguir a viagem.
Os demais passageiros observam a tudo, calados.
Quando me pegaram pelo braço e me puxaram,
instantaneamente, recobrei a lucidez.
Pensei:
- Estamos na ditadura militar. Se descer serei preso. E,
quem sabe, vão sumir comigo. Nunca mais meus pais vão me ver. Preciso agir
rápido e ter um bom argumento para demovê-los.
Lembrei que portava uma carteira funcional de meu pai, que
era assessor legislativo da Assembléia do estado de São Paulo.
Enquanto pegava a carteira no bolso, disse com firmeza e
em voz alta.
- Me solta. Por favor. Vocês não sabem com quem estão falando.... Eu sou filho do presidente da Assembléia Legislativa do estado de São Paulo. Se
mexerem comigo vão arrumar encrenca pro lado de vocês.
Apresentei a carteira funcional do meu pai, junto com
minha carteira de identidade.
Um deles as pegou e examinou.
Estava tenso, mas mantinha a postura de filho de autoridade.
Olhava de cabeça erguida.
Percebi que ele reconheceu uma relação entre as carteiras,
pelo fato de ter "Junior" ao final do nome de meu pai.
Ele olhou novamente o brasão do estado do estado de São
Paulo e me devolveu as carteiras.
Conversou alguma coisa com os colegas.
Soltaram meu braço.
Pensei:
- Ufa! Acreditaram em mim.
Sentindo-me confiante indaguei o que estava acontecendo.
Um deles respondeu que houve uma reclamação do comandante
quanto a meu comportamento a bordo.
Respondi que de fato havia bebido um pouco alem da conta. Mas que agora estava
tudo bem.
Eles me perguntaram do porque eu querer ir ate a cabine.
Respondi com tranquilidade que gostava de aviões. Que meu sonho era ser piloto de avião.
Disse, também, que
sempre que voava visitava a cabine.
Completei dizendo que foi a primeira vez que fui barrado.
Eles voltaram a conversar entre si.
Depois, foram conversar com a chefe das aeromoças.
Finalmente, disseram que poderia seguir viagem.
Desceram da aeronave.
Senti um alivio.
Comecei a tremer as pernas.
O coração disparou.
Pensei:
- Que susto que passei!
Um sentimento de vergonha pelo vexame passado se apossou
de mim.
Olhei ao redor para observar a reação dos demais
passageiros.
Agiam como se nada houvesse acontecido.
Todo mundo com cara de paisagem.
Pensei:
- Deixa pra lá. Se eles agem como se nada tivesse acontecido, vou fazer o mesmo. Preciso agora é relaxar.
Apertei o botão para chamar a aeromoça.
Ela veio até mim.
Solicitei uma dose de uísque.
Ela respondeu que eu não estava autorizado a beber mais nada
alcoólico a bordo.
Respondi:
- Como assim?
Ela disse que os agentes proibiram que bebesse qualquer
coisa alcoólica ate chegar ao destino.
Pensei:
- OK. Safei-me de uma boa. Deixa eu ficar quieto. Não vou mais
arrumar confusão.
Pedi, então, uma coca cola.
O pior tinha passado.
O avião decolou e cheguei ileso a São Paulo.